quarta-feira, 24 de maio de 2017

Sobre a História de Arde-Lhe-o-Rabo: Maria Gonçalves Cajada, Bruxa e Feiticeira Degredada

Saludos! Depois de séculos sem entrar aqui, venho compartilhar no blog essa obra interessantíssima da historiadora Gilmara Cruz: "Práticas de Feitiçaria - O Caso de Maria Gonçalves Cajada", sobre a Bruxa portuguesa que veio degredada para o Brasil no século XVI, sua história, suas práticas mágicas e análises sobre seu processo inquisitorial bem como o entorno social onde viveu. E em minhas andanças virtuais, encontrei esse texto saboroso de autoria de Esmeralda Martinez, sobre a história da Bruxa Arde-Lhe-o-Rabo e demais Bruxas e Feiticeiras quinhentistas: http://www.esmeraldamartinez.com.br/2015/06/uma-feiticeira-na-inquisicao-da-bahia.html?m=1

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Fervedouro: Feitiço da Bruxaria Tradicional Portuguesa

Há referências minuciosas (incluindo receitas e conjuros) de Fervedouros desde o século XVI, principalmente relatados por Bruxas e Bruxos de Évora. Francisco Bethencourt, renomado historiador português, em sua obra "O Imaginário da Magia - Feiticeiras, Adivinhos e Curandeiros em Portugal no Século XVI" (Editora Companhia das Letras), nos revela relatos documentados de Bruxas e Bruxos do século XVI de Évora à Inquisição. Lembremos que a Inquisição em Portugal naquela época, não utilizava como prática corrente as torturas; assim sendo, tais relatos possuem veracidade, inclusive por dois outros aspectos:

 a) A Feitiçaria não recebia penas severas, fazendo com que, em sua maioria, Bruxas, Bruxos e Feiticeiros retornassem ao seu Ofício tão logo cumprissem a pena (detenção, ter de assistir missas em dias de Ajuntamentos ou Conciliabulos - Sabás - que acabou por fortalecer a criação de Tradições sincréticas entre a Bruxaria e a Igreja, onde rituais e Devoções a Deuses, Deusas, Espíritos e Demônios ocorressem dentro do templo de Cristo, bem como rituais de Bruxaria e Feitiçaria);

 b) E também era um marketing poderoso para uma Bruxa ou Bruxo bem como Feiticeiros, o fato de terem sido chamados a depor ao "santo ofício", e ainda mais serem presos... sinal que possuíam fama e renome... e o fato de voltarem à ativa, aumentava sobremaneira a sua clientela...


O Fervedouro é utilizado para ferver a pessoa alvo do Feitiço. Há, então, Fervedouros de Amarração Amorosa, de Dominação, de Amansamento, de Maldição (lançando Feitiços de Azar, Doença, Fracasso, Derrota, Impotência, Loucura, Banimento, etc,), além de Fervedouros de Morte, que incluem ossos humanos, penas de coruja, penas de corvos, pedras d'Ara (pedras que guardam relíquias dos Santos em altares católicos, pedra esta sobre a qual o Ritual da Transubstanciação é feito pelos padres - lembrando, aqui, da importância simbológica que a Igreja assumia no imaginário mágico religioso da Península Ibérica de então, onde múltiplos elementos culturais, tais como Pagãos, Muçulmanos, Judaicos, Cristãos, etc, se mesclavam nas Tradições Bruxas e Feiticeiras), assim como pedras de cemitérios encruzilhadas, ruínas onde ocorreram tragédias, campos onde ocorreram batalhas e animais como os sapos, serpentes, morcegos, aranhas, escorpiões, etc.

Os ingredientes eram postos a ferver em caldeirões e panelas de barro, junto a testemunhos das pessoas a serem enfeitiçadas (cabelos, pedaços de roupas íntimas, etc) e enquanto borbulhava a mistura, a Bruxa ou Feiticeira dizia Conjuros, que enfatizavam as intenções do suplicante (a pessoa que encomenda o Feitiço), como os seguintes:


"Por Tição, por Carvão, por Lúcifer, por Caldeirão, e pela Madre de São Pedro, a Maior Diaboa que no Inferno está, no Caldeiro de Barzebu te cozo, debaixo de meu tacão te prendo, teu coração no cavo de mia mão trago, e nas tuas agoas estes pimentos atiço a arder-lhe do cu à moleira, te trazendo apaixonado, por Arte Feiticeira!"


"Eu te embuço com o buço do lobo e com o coração do homem morto e com três arrastados e com três enforcados e com três mortos a ferro que tu sejas meu marido."


"A vós foão má noite vos quero dar faço volta cama d'abrolhos e o cobertor de carrapatos e chinches e piolhos que não possais dormir nem assossegar até que me não venhais buscar."


"Eu te mando chamar por três cavalos correntes e três lebres ardentes e três Diabos Valentes, Lúcifer e Barrabás e Caldeirão, que Eles vão e lhe travem do rinhão e de trezentas conjunturas que em seu corpo estão e de todalas que mais são, que não possa durar nem assossegar até que me não venha ver e buscar."


"Marta mana Marta namja a santa senão a diaboa que leva o caldo aos enforcados, me leves a ter com meu bem amado foão, que o tomes pelo pulmão e pelo rinhão e pelo coração e por trezentas e sessenta conjunturas que no seu corpo são e mais se mais são e mo tragas para que me dê quanto tiver e faça o que eu quiser e diga quanto souber."


"Marta o Mar d'Espanha passeis e varas d'azimbro apanheis e na mó de Barzabu as moei e no coração de foão as tancheis que seja manso."


"Lá te mando Satanás e Barrabás e Lúcifer Tição e Caldeirão e todolos Diabos d'aquém e d'além que todos vos ajunteides e pelo campo de Josafat iredes e uma vara de zimbro me colheredes e na maior fragua do maior Diabo aguçaredes e no coração de foão a meterdes para que ele não possa comer nem beber nem dormir nem assossegar até que a não viesse buscar e dar-lhe do que tiver e dizer quanto souber."


Já nos Fervedouros de Morte, as Forças das Trevas são chamadas a atormentar a pessoa enfeitiçada até sua vida se esvair por completo...


A Oração da Cabra Preta Infernal, um Devotio à Deusa Lusitana Atégina, Senhora Bruxa do Submundo e da Magia Negra, faz parte das práticas e ofícios da Coeva Ilur Ébura Akelarrea Sabbathis, do Clã da Cabra Preta, descendente dos Devotos de Atégina. Essa Oração pode ser utilizada enquanto se conjura o Fervedouro de Maldição...


"Cabra Preta que desce ao Inferno,
levai convosco os meus inimigos,
aprisiona-os em grossas correntes,
a fustigá-los e atormentá-los,
por todos os séculos e séculos...
Deusa Bruxa e Feiticeira,
Cabra Preta Milagrosa,
Por Chicote, Tridente e Punhal,
Sejais Propícia a este/a Vosso/a Acólito/a,
nos haveres de Bem e de Mal...
Mãe Negra, Portadora da Luz,
Cabra Preta do Monte e da Estrela,
ressurja das Profundezas do Inferno,
Trazendo a nós, os Vossos Filhos,
a Luz da Sabedoria a arder,
 Oh Atégina Cabra Lucífera,
entre os Vossos Benditos Cornos,
Vossa Bênção, Maldição e Poder!
Eko Eko Amazaráka Azaza Laylah
Akerra Goiti Akerra Beiti!"


Com as Bênçãos de Lagarrona a Bruxa de Évora, Cabar o Grande Mestre Bode do Sabá, Candabul o Bruxo, Sán Pietro Akerra e os Ancestrais Guardiães de Ilur Ébura Akelarrea Sabbathis... Akerra Goiti, Akerra Beiti... \|/

domingo, 24 de março de 2013

Bruxaria Tradicional Brasileira: A Arte Mágica das Benzedeiras, as Portadoras e Doadoras da Bênção

Sempre leio pelas searas virtuais que versam sobre os temas Bruxaria e Paganismo (ou Neopaganismo, enfim) sobre diferenças entre a considerada “Religião da Bruxaria” (que por sua vez é algo a nomear desde vertentes que se apresentam como “Tradicionais e pré-wiccanas”, e que se identificam como uma religião, à Wicca propriamente dita, uma das vertentes de Bruxaria moderna, criada por Gerald Gardner há 70 anos) e aquilo que alguns nomeiam de “Feitiçaria Popular” ou “Magia Popular”. Wicca possui um corpus muito próprio de crenças e práticas, embora beba de várias fontes (dentre as quais, Bruxaria Tradicional). Bruxaria Tradicional engloba várias vertentes mágico-religiosas em várias culturas, antropologicamente falando. E Feitiçaria Popular nada mais é do que a Arte Mágica das Bruxas, preservada em um de seus bastiões mais notórios: é também na Magia Popular, portanto, que a Tradição Bruxa buscou se preservar, em cifras culturais das mais variadas. Hoje eu li um texto sobre Benzedeiras, sobre as Bruxas Tradicionais Brasileiras, que com seu Dom, seu Encanto, sua Magia e seu Amor perpetuam o Saber de nossos Ancestrais Bruxos e Bruxas de outras épocas e terras, lá atrás em nossas raízes do Velho Mundo... ... e o texto me levou a três momentos vividos por mim, redespertados pelas Águas de Mnemosyne, a Memória Ancestral... nos três momentos, estava presente ao meu lado Dona Benedita, minha Avó: no primeiro momento, eu tinha 2 meses de idade, e estava acometido de sarampo, além de ter tido antes catapora. Fiquei internado um bom tempo no hospital até, quase morri. Até que minha mãe me levou até a Casa da Vó... onde havia a Coeva dela, local de rituais mágicos, onde imagens de santos vestidos com mantos feitos por ela, se assentavam num altar ao lado de ervas, chicote, punhal e chifres de carneiro... minha Vó me tomou nos braços e pintou todo o meu pescoço com urucum... e ficou conjurando e murmurando rezas e encantamentos, comigo nos braços, lutando com a Ceifeira, que queria me levar... Vó Ditinha foi mais Forte! Passou-se o tempo, e veio o segundo momento: as pérfidas artimanhas de olhares que secam a força e a vitalidade das criaturas vivas me acometia, drenando minhas energias... eu tinha 5 anos de idade, e estava com quebranto... Vó Ditinha nos recebeu, minha mãe e eu, em sua Coeva... onde ela preparava no seu caldeirão de ferro preto uma Poção Mágica, à base de hortelã e raspas de chifre de carneiro, impregnando a água que borbulhava... sobre a mesa (cercaaaaaaadaaaaa de primos, meu irmão, minha mãe e eu), Vó Ditinha colocou um prato, sobre o qual traçou a Encruzilhada dos Espíritos: a cruz com pólvora... o negro pó que, despertado pela chama, se transforma em uma nuvem na qual espíritos são conjurados... a Vó trouxe um tição aceso do Fogão a lenha e com ele conjurou os espíritos, bem ao centro da negra encruzilhada, traçada sobre o branco círculo mágico de porcelana sobre a mesa... e veio a explosão, que obrigou os espíritos vampirizadores a serem conjurados na fumaça e, com ela, banidos... imediatamente, a Vó despejou a Poção que chegava do Caldeirão, devidamente pronta, sobre o prato onde o conjuro tinha sido feito... e a poção dali resultante, foi vertida numa caneca para eu beber... e o menino aqui, perplexo com tal espetáculo fugiu... kkkkkk.... achando que ao beber a poção explodiria junto, olha a viagem do guri! kkkkk mas, a Vó, Feiticeira e VÓ, com sua autoridade inquestionável me encurralou no arraial e me deu a poção pra beber... e a Cura, mais uma vez, se fazia por seu Dom, Amor e Sabedoria... Passaram-se muitos, muuuitos anos, até que viesse o terceiro momento, desperto do sono da Memória: Vó Benedita estava em seu último leito nesta Terra... lutava bravamente, mesmo estando paralisada por um derrame, e sofrendo as dores da diabete... estava em sua Casa, recebendo alimentação por sonda, sem se mexer, sem falar... nós estranhávamos o fato dela ainda não ter feito a passagem, e estar sofrendo tanto nesse Mundo ainda, sem poder descansar de tamanhas agruras... minha intuição me impeliu a ir visitá-la... não me enganei... era NECESSÁRIO que eu estivesse ali, mais uma vez, diante desta que, mais que qualquer outra, reconhecia e reconheço como VERDADEIRA Sacerdotisa, pois servia a todos que batiam a sua porta, mães de todos os lares em busca de cura a seus filhos, mulheres desesperadas pelos dramas da maternidade... seja a que era desejada ou não... Dona Benedita SIM era uma Bruxa Mestra, pois além de deter a Ciência e a Arte, detinha o Dom... e era justamente esse Dom que pesava naquele momento, e a impedia de partir... já foi dito que nossa condição de Bruxos é antes uma Maldição, um Fado, um Destino... e que é nossa Missão haurir, extrair de tal Maldição as Bênçãos mais variadas... e, quando chega o momento fatídico de transpassar o Véu Entre os Mundos, esse Dom não pode permanecer conosco: deve ser repassado a um herdeiro! Me aproximei da cama da Vó... conversei com ela... palavras de carinho de um neto a sua Vó, buscando confortá-la de alguma maneira... foi quando, depois de um mês paralisada e sem falar, Vó Ditinha reuniu o que tinha e o que não tinha de Forças e pegou em minha mão... não consigo esquecer a Força com que ela a segurava... assim como a Força que ela moveu, para me dizer as Palavras... o Encantamento... Antes pedi licença a minha mãe e a minha tia... ficamos só eu e minha Vó, perante o Portal de Nossos Ancestrais... e Dona Benedita, Bruxa, Feiticeira, Sacerdotisa dos Antigos (pouco importando se eram venerados pela vestimenta cristianizada de imagens que serviam de suporte sincretizado), Mulher Sábia e Poderosa, me iniciava... não na linhagem materna ibérica, cujos caminhos eu já trilhava.... mas na linhagem dela, cujas raízes se estendiam pelo Vale do Paraíba (São Paulo), Minas Gerais, Bahia... e, cruzando os mares, até as terras Beirãs, no Coração da Lusitânia... Vó Ditinha me disse as Palavras... e com seu toque, me passou a Condição... o Fado... o Destino... o seu Dom... em seguida, voltou a se deitar, paralisada... muda... pois descansava de sua Missão finalmente cumprida... e, naquela mesma semana, ela partia em Paz... em seu funeral, através dos ritos de nossa Arte, fui até onde ela estava, no Entre Mundos... ela remava mansa e tranquilamente o Barco de Nábia, nossa Mãe, cruzando Suas Benditas Águas... e do outro lado do Rio, ela começava sua jornada... Peregrina a subir pelas encostas da Colina Eterna, onde se assenta, lá no alto, a Aldeia de Nossos Ancestrais... ... mas Bruxa que é Bruxa, cruza tais caminhos quando bem quer... e já há relatos contados em nosso Clã de situações em que o Espírito de Vó Ditinha surgiu para alterar os rumos dos acontecimentos, de forma a ajudar e defender Seus Filhos... Beijo minha Vó, desse teu neto que, nesta Terra, segue trabalhando o Nosso Ofício...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Bruxaria em Portugal: O Mundo do Bruxo e do seu Cliente


Saludos!

Em minhas pesquisas, achei um texto interessantíssimo sobre as práticas mágicas de Bruxas tradicionais portuguesas (que compreendem as artes da rezadeira de aldeia, mas vão além em muitos casos): "O Mundo do Bruxo e do seu Cliente", de Miguel Montenegro. O texto é bem esclarecedor, trazendo inclusive o modus operandi, ou seja, a forma como trabalham Bruxos e Bruxas ao atender as necessidades dos aflitos que os procuram.

Só não concordo com algumas observações do autor, a respeito do que não pode ser classificado ,segundo ele, como práticas Bruxas: práticas mágicas e medicinais populares, como curas com ervas, rezas acompanhadas de gestos, endireitamentos de maus jeitos, entorses são práticas comuns de muitos Bruxos tradicionais (sejam eles chamados ou auto-considerados como Bruxos ou não). Assim como práticas oraculares envolvendo cartomancia, tarot, entre outros métodos divinatórios, e mesmo análises astrológicas (mais comuns em Bruxos letrados, portanto, não tão frequentes assim entre Feiticeiros de aldeias, geralmente herdeiros de tradições orais, passadas de geração a geração, sem a necessidade de estudos acadêmicos).

No mais, concordo e muito com o autor, inclusive por ter vivido muito do que ele contou. Deixo com vcs o texto na íntegra:

-- O MUNDO DO BRUXO E DO SEU CLIENTE --

Por: Miguel Montenegro

Venho hoje aqui falar-vos da bruxaria portuguesa a partir de uma experiência de terreno que, ainda que intermitentemente, desenvolvo desde os finais de 1994 até hoje, principalmente no Norte de Portugal.

Não venho falar de curiosidades folclóricas, ou de práticas mágicas arcaicas que não seriam senão sobrevivências retrógradas de um passado obscuro, e que apenas subsistiriam em locais recuados, alimentadas pela ignorância e credulidade de uns quantos espíritos inocentes.

Venho antes falar-vos de um conjunto de ideias, de práticas e de acontecimentos característicos que configuram o mundo do bruxo e do seu cliente em Portugal. Um mundo que não só está vivo e em constante transformação, como cultura popular que é, mas também um mundo assaz extenso e que toca bem mais pessoas do que o que seríamos levados a pensar pelo pouco que dele se fala.

Ora, um outro mundo muitas vezes cruzado pelas trajectórias dos clientes dos bruxos a braços com os seus problemas específicos é precisamente o mundo médico, em especial os hospitais e seus bancos de urgências. Muitos de entre vós, em particular aqueles que vierem a trabalhar em hospitais, ouvirão histórias, presenciarão inquietações e terão, por vezes, de intervir, enquanto técnicos da biomedicina mas também enquanto pessoas.

A maior parte daqueles de entre vós que têm já anos de experiência profissional saberão do que falo.

Como leigo que sou no que respeita à vossa formação e à vossa actual ou futura profissão, não tenho a pretensão de vos dizer o que deverão ou poderão fazer em tais casos. Pretendo aqui apenas partilhar convosco alguns conhecimentos que fui podendo reunir e articular acerca daquilo que com alguma imprecisão chamamos bruxaria, na convicção de que esses conhecimentos poderão ser-vos úteis em actuais ou futuras situações profissionais.

Tendo em conta que à ideia do bruxo se associam uma série de personagens reais e imaginários desde que neles se descortine uma vaga associação à magia, aos saberes curativos tradicionais ou ainda ao charlatanismo psicológico, a melhor maneira de nos introduzirmos no assunto é dizer aquilo que os bruxos portugueses contemporâneos não são.

a) Não os podemos confundir com os praticantes de medicinas tradicionais baseadas no uso de ervas medicinais nem com aquelas pessoas que tratam, ou melhor, «talham» males de pele por meio de uma reza acompanhada de um rito manual.

b) Também não são bruxos os ortopedistas populares conhecidos como «endireitas».

c) Não são videntes nem cartomantes embora todos assumam a primeira competência e alguns «deitem as cartas».

d) Os bruxos também não são astrólogos nem os astrólogos bruxos.

e) E, sobretudo, não se anunciam nos pequenos anúncios de jornal que, hoje em dia, um pouco por todo o lado, oferecem os serviços do Prof. X ou da Drª Y, médium vidente, capaz de traçar a sua carta astral, resolver os seus problemas de amor, negócios e família e ainda de reequilibrar com passes as suas energias conturbadas.

Por isso, mesmo antes de nos ocuparmos da identidade do bruxo, podemos perguntar-nos como é que se chega até ele. E a resposta é: de boca a orelha. Se o potencial cliente não consultou ainda um bruxo, há sempre um familiar, vizinho, amigo ou conhecido que consultou um ou que sabe da existência de um. Por vezes, é mesmo este último que, estando a par do problema, anuncia ao potencial cliente que se trata de uma questão do foro do bruxo.

Mas quem é o bruxo?

Fazendo fé nos relatos dos bruxos e dos clientes, não se torna bruxo quem quer. Ao contrário, a concepção que impera diz-nos que se torna bruxo quem a isso é obrigado; embora em pequeno número, os relatos biográficos que pude recolher denotam um percurso padrão relativamente estável que vou tentar descrever de forma animada.

Mas não sem antes fazer uma observação válida para o resto desta exposição: a ordem de acontecimentos e interpretações que constituem o mundo do bruxo e do seu cliente inscreve-se no âmbito de uma racionalidade diferente da racionalidade médico-científica assim como daquela pela qual nos regemos na nossa vida de todos os dias. O meu objectivo aqui não é reduzir esses acontecimentos e interpretações a uma racionalidade que lhes seja estranha, mas sim, através deles, tornar acessível à compreensão aquela que lhes é própria.

A vida do bruxo desenrola-se sob o signo de um destino inelutável. Por vezes, esse destino manifesta-se antes mesmo do nascimento. É quando a mãe, grávida, ouve o choro da criança que traz no ventre. À medida que vai crescendo, a criança denota uma grande inteligência mas também uma grande sensibilidade. Consegue sentir os sintomas das pessoas doentes que se aproximam dela. É muito mais permeável aos outros do que a maior parte das pessoas, ao passo que os outros se tornam invulgarmente transparentes. Mas, bem mais do que o prazer, é a dor alheia que a atinge em cheio e, por vezes, de forma insuportável. Além disso, não são apenas os vivos, mas também os mortos a invadir-lhe o seu espaço vital. Mortos há dezenas de anos ou ao outro dia do enterro, aparecem-lhe e falam-lhe, como se estivessem vivos.

À medida que a adolescência avança, e que a juventude se aproxima e chega, incapaz de se relacionar normalmente com os outros de quem gostaria de saber e sentir bem menos coisas, e cada vez mais ciente da singularidade das suas experiências, o futuro bruxo ou bruxa procura cada vez mais o isolamento e a solidão.

Ocorrem então verdadeiras crises de possessão: além de falarem com ele, os espíritos entram-lhe no corpo. Aparece ao fim do dia cansado e estonteado, a roupa esfarrapada e ensanguentada de andar no meio das silvas, sem conseguir lembrar-se do que fez ou do que lhe aconteceu. Ou então transfigura-se de forma desordenada e selvagem diante de familiares, conhecidos e circunstantes a quem parece que uma outra ou outras pessoas se manifestam naquele corpo. Por vezes fica absorto e fala sobre os espíritos do outro mundo ou então manifesta o conhecimento de coisas que, normalmente, não teria meios de saber.

Noutros casos, estas crises de possessão e de vidência sobrevêem inesperadamente, na sequência de um episódio crítico na vida da pessoa, sem uma história, indícios ou signos anteriores que as prenunciassem. Nas mulheres, tal pode acontecer por altura das primeiras regras, no pós-parto ou na menopausa.

Num caso como noutro, diz-se que o indivíduo tem o «corpo aberto» ou «morada aberta». Estas manifestações podem ser acompanhadas de doenças físicas cujas causas acabam, posteriormente, por ser reconhecidas como sendo de natureza espiritual.

Neste ponto o percurso complica-se com, pelo menos, três possibilidades. É que a família ou o próprio, face à situação de crise, pode apelar a três instâncias diferentes: um padre, um bruxo ou um Centro Espírita.

O primeiro lê-lhe a Bíblia em latim, exorciza-o, administra-lhe o sacramento da comunhão ou ouve-o numa longa confissão. Ou seja, lança mão do seu leque de possibilidades rituais e, nos limites do que lhe é lícito dentro da sua religião, e à excepção do exorcismo para o padre exorcista, transforma rituais religiosos em rituais mágicos. Mas, frequentemente, a intervenção do padre não é eficaz ou então os seus efeitos são meramente paliativos e a resolução do problema adiada.

O bruxo ou bruxa consultada, face à especificidade do caso, terá de escolher uma de duas vias.

Casos há — em particular quando as crises de possessão irrompem sem uma história anterior de relação ao mundo dos espíritos — em que se coloca a hipótese de «fechar o corpo», permitindo ao indivíduo reintegrar a sua vida normal. Foi-me contada uma história de um indivíduo, vítima de crises de possessão durante anos. A bruxa que o tratou explicou à sogra dele que, se ele quisesse, dali a dois anos podia estar a «fazer serviço» (i.e. a exercer a profissão de bruxo). À sogra, contudo, não lhe agradou a ideia de ter um bruxo na família e a mulher, então, «fechou-lhe o corpo». Veremos mais adiante os rituais utilizados para este fim.

Noutros casos, o bruxo conduz o indivíduo a um Centro Espírita onde, para empregar a expressão consagrada, «acabará de abrir o corpo». Ou seja, tratar-se-á, para o indivíduo, não de evitar, mas de aprender a controlar e mesmo a utilizar o fenómeno da possessão. Frequentemente o futuro bruxo já passou pelas mãos de vários padres e bruxos até ser conduzido ao Centro Espírita.

Depois de terminada a sua formação, há bruxos que mantêm uma ligação ao Centro, enquanto que outros se desligam e prosseguem autonomamente.

Casos há em que a transformação do indivíduo com corpo aberto em bruxo não passa pelos centros espíritas; todavia, neste ponto, a minha informação é ainda insuficiente.

Seja qual for o caso, quer se trate daquele que nasceu com o corpo aberto ou daquele que, na sequência de um episódio crítico ficou com o corpo aberto, tenha a sua formação passado ou não por um centro espírita, há um episódio fulcral no percurso do futuro bruxo que o confirmará como tal: é quando, pela primeira vez, é colectivamente reconhecido e confirmado enquanto bruxo, frequentemente na sequência de uma primeira intervenção mágica coroada de sucesso. A palavra espalha-se, a fama cresce e cada nova cura acresce ao seu reconhecimento público enquanto bruxo eficaz.

Encontramos bruxos dos dois sexos e de diferentes idades, embora a maior parte sejam mulheres. De um ponto de vista sociológico, podemos dizer que predominam os bruxos oriundos de classes populares.

Se foi um percurso atribulado que o conduziu ao seu actual estatuto, o exercício das suas funções, ou seja, das suas faculdades mediúnicas no contexto da assistência aos seus clientes não é, segundo ele, mas também segundo os seus clientes — reportando-se ao que ele lhes conta e mostra — destituído de riscos e de consequências, em particular no que respeita à sua saúde.

O bruxo considera-se a si mesmo e é considerado pelos seus clientes como tendo um dom, um dom de Deus. Um dom que, senão ambíguo, é bifacetado. Ele confere-lhe poder, prestígio e bem-estar financeiro. Ao mesmo tempo impõe-lhe desde cedo um destino a que ele não pode escapar, assim como uma profissão cujo prestígio tem o reverso da estigmatização social e cujo poder e benefícios financeiros não apagam a penosidade física e mental do seu exercício.

No seu discurso, manifesta a sua ligação ao Espiritismo e a sua identidade de católico. Se o Espiritismo é para ele uma referência fundamental, para os seus clientes é secundária. É evidente que se o bruxo se revê no Espiritismo e no Catolicismo, o Espiritismo e o Catolicismo ortodoxos e bem pensantes não se revêem nele.

Ao bruxo está indissociavelmente ligado um espírito auxiliar, regra geral de uma pessoa falecida, ou então um santo, a quem ele chama «guia».

Podemos dividir os bruxos em dois tipos.

O mais comum é aquele que durante a consulta é possuído pelo seu guia. Há sempre algo na atitude do bruxo que marca a passagem de um estado ao outro e que podemos considerar um pequeno «ritual de transição». Alguns, pura e simplesmente, fecham os olhos e deixam descair a cabeça ou deitam-se mesmo até que, numa voz modificada, surge a palavra do guia dirigindo-se ao cliente. Outros marcam a transição com um pequeno rito geralmente de inspiração católica: benzem-se, persignam-se ou recitam uma oração. Frequentemente, antes de o guia começar a falar e, no fim, antes de o bruxo recobrar a consciência, ele arrota. Se o fenómeno parece desconcertante e absurdo, não nos devemos esquecer que ele traduz o carácter pneumático do espírito que sai do corpo ocupado por um outro espírito.

Os bruxos que incorporam dão mostras de não terem consciência do que se passou quando o guia ocupou o seu lugar, pelo que incitam os clientes a estarem atentos durante a conversa com o guia.

O segundo tipo de bruxo, menos frequente, é o que não é possuído durante a consulta mas que pode, a qualquer momento, e de forma imperceptível para o cliente, entrar em contacto com o seu guia.

O guia orienta os actos e decisões do bruxo. A ligação de ambos é íntima, tocando mesmo a indistinção. Referindo-se ao mago em geral no seu «Esboço de uma teoria geral da magia», Mauss e Hubert caracterizam o «contacto íntimo entre o indivíduo e os seus aliados sobrenaturais» como «possessão virtual permanente» (p. 35) e consideram haver uma indistinção fundamental, na magia, entre a alma do mago e o seu corpo, assim como entre a alma daquele e os seus espíritos auxiliares, indistinção que se acompanha de uma incerteza dos clientes relativamente à questão (p. 26).

Pude constatar no terreno específico da actual bruxaria portuguesa esta indistinção e esta incerteza. Elas são constitutivas. Não é, por isso, necessário ou mesmo pertinente procurar os limites reais ou imaginários que separariam estas duas entidades — o bruxo e o seu guia — que, na realidade, tiram a sua essência dessa associação íntima. Quando o bruxo diz ao seu cliente que enviará o seu guia para o proteger ou ajudar numa dada situação, é o próprio bruxo que, por delegação, o ajuda. Quando este fala da mobilidade do «seu espírito» que se desloca para averiguar o que está fazer fulano que se encontra num outro lugar, ficamos sem saber se é um ou outro. E do mesmo modo que o guia, durante a consulta, vai «buscar» um outro espírito para que ele fale com o cliente, o bruxo, investigando uma casa assombrada não só sente como vê e constata o estado de um espírito obstinado que não quer abandonar o local. A comunicação entre o bruxo e o guia, que não só o orienta, mas que também o instrui e doutrina é virtualmente ilimitada, a distinção acabando por tornar-se acessória e secundária.

Os problemas e motivações que levam os clientes ao bruxo são múltiplos.

Os problemas típicos são agrupáveis em duas categorias segundo os seus diagnósticos:

Por um lado temos os encostos, o corpo aberto, problemas de susceptibilidade aos espíritos ligados ao chamado espírito fraco e ainda as casas assombradas. Ou seja, problemas associados aos espíritos.

Por outro lado temos os bruxedos ou bruxarias e o mal de inveja. Ou seja, problemas associados aos vivos.

Vou começar por uma descrição genérica mas detalhada dos casos de encosto que nos servirão de paradigma uma vez que muitos elementos relativos aos sintomas, ao percurso e atitudes do cliente, à actuação do bruxo em consulta e aos rituais, são comuns aos casos determinados pelos outros problemas típicos.

O encosto é a possessão pelo espírito de um morto ou morta. Na maior parte dos casos a possessão é parcial e intermitente, podendo, em alguns, ocorrer momentos de crise em que a possessão é total.

Os sintomas ou sinais dos encostos podem ser variados; normalmente aparecem vários associados. Eis os mais correntes:

— perda de apetite e emagrecimento;
— tristeza, melancolia e depressão;
— insónias;
— cansaço físico inexplicável;
— doença ou sintomas de doenças que posteriormente se revelam como sendo as doenças de que sofria o falecido ou falecida encostado, em particular aquela que causou a sua morte;
— perda dos sentidos durante horas ou dias;
— acidentes de carro e acidentes domésticos em particular se repetidos num curto espaço de tempo;
— variações inexplicáveis de humor; gestos e frases ocasionais que não são característicos da pessoa que os exprime, mas do morto; crises de possessão completa; e enfim, toda a espécie de comportamentos atípicos e injustificados relativamente à história, às características e à situação da vítima;
— ser empurrado, esbofeteado e diferentes tipos de manipulação física sem que seja visível um agente;
— vidros, pratos, etc., que caem ou que se partem sozinhos e, em geral, objectos que se deslocam e que produzem ruído sem causa «física» aparente;
— som de passos; sensação da presença de alguém;
— a voz do morto que fala à vítima ou então o morto que aparece, acessível a todos os sentidos, como se estivesse vivo e presente.

Os sintomas do corpo aberto ou morada aberta como também se lhe chama já foram abordados na descrição do percurso típico do bruxo. Englobam os sintomas do encosto, mas com algumas diferenças significativas: os sintomas são mais intensos e os períodos de possessão completa, assim como a visão e a audição dos mortos, são mais frequentes. Mas, sobretudo, enquanto o encosto tende a ser singular, ou seja, é só um espírito que se manifesta — ou, pelo menos, é assim que no diagnóstico do bruxo a situação se configura — na e à pessoa com o corpo aberto são vários espíritos que se manifestam. Os limites entre as duas categorias parecem ser relativamente fluidos ao mesmo tempo que parece também haver o risco de que o encosto intenso ou prolongado se transforme em morada aberta. Um outro traço distintivo do corpo aberto que parece estar ausente nos casos de encosto são os episódios de vidência.

Em muitos casos daquilo que posteriormente será diagnosticado pelo bruxo ou bruxa como sendo um encosto, a vítima ou os familiares avançam primeiro outras interpretações e tentam outras soluções. Nos casos em que os sintomas ou parte deles indiciam um problema médico recorrem a um ou vários médicos. O insucesso da intervenção médica pode ter diferentes formas. Por vezes os sintomas indicam uma doença específica mas os exames e análises não denunciam nenhuma anormalidade; noutros casos a doença é identificada e tratada mas não há remissão dos sintomas; noutros ainda o médico declara que a pessoa não tem nada, deixando-lhe, por vezes a impressão dolorosa de estar a ser tratada como doente imaginária ou fingida.

Em caso de crise de possessão agitada e violenta é frequente os familiares levarem a vítima à urgência de um hospital onde lhe é administrada uma injecção de tranquilizante e enviada de novo para casa. Esta solução funciona sempre como um paliativo que resolve apenas pontualmente a emergência, deixando o problema intacto.

É evidente que a intervenção médica não é procurada em todos os casos. Posso evocar a título de exemplo um caso que me foi contado pela sua protagonista, uma doméstica e agricultora que trabalha numa antiga casa senhorial do Minho hoje propriedade de uma empresa. O principal sintoma, ou, melhor dizendo, sinal, de perturbação foram os barulhos dos utensílios na cozinha alegadamente mexendo-se sozinhos. Estavam em casa ela e a sobrinha que vive com ela. Uma semana depois, à mesma hora, o mesmo fenómeno voltou a produzir-se. Ainda antes de o cunhado da entrevistada ter ido consultar uma senhora, levando para o efeito uma fotografia dela, ambas estavam cientes de que se trataria de uma questão de espíritos.

Por vezes, como foi dito para os futuros bruxos, recorre-se aos préstimos de um padre. Mas normalmente a actuação deste é pouco eficaz. Há uma remissão parcial e/ou temporária dos sintomas. Ouvi mais de uma vez histórias em que a intervenção do padre suscita manifestações violentas, obscenas e anti-religiosas por parte da pessoa possuída. Embora as reacções obscenas se possam produzir junto a outras personagens, as reacções anti-religiosas costumam verificar-se apenas diante do padre que desempenha a função oficial ou oficiosa de exorcista.

Mas é difícil dar conta, de uma forma genérica da multiplicidade dos casos cujas especificidades e detalhes são muito significativos.

Na maior parte dos casos de encosto, de corpo aberto, mas também de casas assombradas, de bruxaria e de mal de inveja, é depois de uma série de peripécias, hipóteses e hesitações que os envolvidos optam por «ir à bruxa». O quadro que determina esta escolha, ou a sua sugestão por parte de um familiar, amigo ou conhecido, está sempre sobredeterminado pela noção e sentimento de se estar mergulhado ou em presença de um infortúnio absurdo. Esta noção e este sentimento podem ser suscitados pelo carácter inexplicável e/ou sobrenatural dos sintomas ou dos acontecimentos, pelo insucesso da intervenção médica, pelo insólito de um azar persistente, que se traduz numa série de acidentes e infortúnios que se sucedem num curto período de tempo.

Em todos os casos ligados aos chamados problemas típicos, aquilo que motiva a ida ao bruxo não é apenas o confronto com um problema grave mas também e sobretudo a falta de sentido que gera o intolerável sentimento de absurdo. O bruxo é, por isso, e antes de mais, um provedor de sentido.

Mas continuemos a acompanhar o percurso da vítima do encosto. Pode ser esta quem vai consultar o bruxo, normalmente acompanhada de um amigo ou familiar. Outras vezes é apenas o familiar que vai — às vezes sem o conhecimento da vítima — e leva uma peça de roupa, ou uma fotografia daquela.

Por vezes, os bruxos que utilizam a possessão durante a consulta poucas palavras trocam com os clientes para além de um cumprimento, e passam logo a incarnar o seu guia. Outros, não podendo controlar o momento exacto em que transe se produz, vão conversando com o cliente, às vezes sobre assuntos sem ligação com o objecto da consulta, até que aquele sobrevenha, o que pode acontecer de forma algo inesperada para o cliente.

De um modo ou de outro, e caso seja o guia a comparecer, este logo pergunta: «O que é que me queres?». Na maior parte das vezes, face ao guia, o cliente deve limitar-se a responder às questões daquele e a ouvi-lo atentamente. Solicitado pelo guia, expõe-lhe o problema. A mão do bruxo toca a fotografia ou peça de roupa da vítima se esta estiver ausente. Se estiver presente, alguns tocam-lhe na mão ou no braço, mas outros não.

O guia diagnostica o problema. «É um encosto que tu trazes», por exemplo. Descreve o morto e, se for caso disso, a natureza da relação entre o morto e a vítima a quem se pode dirigir pessoalmente mesmo que esta não esteja presente, e explica o motivo ou a razão do regresso do espírito. Normalmente não declina o nome deste.

Noutros casos é o espírito encostado que comparece, imediatamente ou «chamado pelo guia», e que declara, por exemplo, «eu sou o pai do teu pai», ou então pergunta: «tu não me conheces?». O cliente foi previamente instruído pelo bruxo para perguntar ao espírito o que ele quer ou então é um auxiliar do bruxo, presente durante a interacção, ou um outro cliente mais familiarizado com o domínio, no caso de consulta colectiva, que o incita a fazê-lo.

Num caso como noutro é ao cliente que cabe, em última instância, reconhecer o espírito.

Os motivos pelos quais este regressa podem ser, na sua grande maioria, agrupados numas poucas categorias:

a) O morto não cumpriu uma promessa religiosa a um santo;

b) O morto experimenta dificuldades no outro mundo;

c) Está nostálgico dos seus e da vida na Terra;

d) É um espírito mau que vem agredir os vivos e que, por vezes, pretende levar alguém consigo.

Podem surgir outros motivos embora sejam raros. Foi-me contada a história de um defunto que terá voltado por discordar da forma como as partilhas testamentárias foram feitas. Para o fazer ir-se embora foi necessário refazer as partilhas. Noutro caso, o defunto — uma mulher que morreu idosa — insistia em pedir perdão a um genro. Pelo que me disseram, tal se devia ao facto de a falecida não ter recebido a Extrema-unção. A bruxa consultada recomendou que a nora em quem ela se encostara fosse confessar-se e comungar, o que serviu de substituto à Extrema-unção.

Quando se trata do primeiro motivo — uma promessa religiosa não cumprida — o essencial do ritual consiste no cumprimento da promessa. Pode tratar-se de pôr um determinado número de velas a arder na capela de um santo, ou então um ex-voto em cera. Da promessa também costuma constar uma pequena esmola ao santo.

O morto que não encontra o repouso no além queixa-se das trevas e pede luz — «para poder ir para um sítio melhor» como se costuma dizer. Pede então que lhe ponham um determinado número de velas ou azeite a arder numa capela ou igreja e que oiçam um outro número de missas em sua intenção.

O espírito nostálgico costuma ceder às razões do cliente e aceita afastar-se. Por vezes também se põem velas e se ouvem missas em sua intenção.

Quanto ao espírito mau, ele chega a resistir ao apelo do guia para comparecer no corpo do bruxo. Neste caso como no caso do espírito nostálgico, o bruxo pode ter de deslocar-se a casa da vítima, para poder incarná-lo. Ele vocifera, ameaça, não se deixa convencer e acaba por recusar-se a qualquer compromisso e mesmo a qualquer comunicação.

Nesse momento impõe-se um ritual que, normalmente, também se realiza nos outros três casos como complemento indispensável às suas soluções específicas. É mais exacto dizer que não se trata de um mas de pelo menos dois rituais, com variantes.

Todavia começam todos com o mesmo rito: o defumadouro. Trata-se de queimar ervas secas e de incensar com o fumo a casa da vítima, a vítima ou ambos. As espécies de ervas que entram na composição do defumadouro variam. Normalmente são plantas aromáticas. O defumadouro pode ser fornecido pelo bruxo ou então comprado num ervanário ou droguista. Por vezes utilizam-se pequenos triângulos de ervas compactadas que vêm em caixinhas importadas do Brasil.

O defumadouro pode ser realizado pelo bruxo, quando ele se desloca à casa da vítima, mas normalmente é o cliente ou uma outra pessoa que não a vítima que o realiza acompanhado de uma pequena oração. Normalmente é necessário defumar a casa e/ou a vítima um certo número de vezes — geralmente ímpar — em dias seguidos e à mesma hora.

Uma ideia precisa subjaz a esta prática: o espírito intruso fica preso nas cinzas.

O ritual mais simples, em duas partes, compõe-se do rito do defumadouro e de um rito de expulsão sumária, ambos realizados pelo cliente. O rito de expulsão consiste em deitar as cinzas em água corrente. Por uma questão prática há mesmo quem deite as cinzas à retrete e puxe a o autoclismo. Mas a prática canónica consiste em deitar as cinzas num rio ou num riacho, afastar-se sem olhar para trás (um rito mágico negativo clássico) e não voltar ao local durante um número determinado de dias — três, por exemplo.

Este ritual, sem outro acrescento, costuma ser utilizado para os espíritos impenitentes ou maus e para os desconhecidos.

O outro ritual é mais complexo e compõe-se de três partes. Depois da realização do ou dos defumadouros, a bruxa dirige-se com o cliente a uma capela. O cliente pode ou não ser a vítima; esta pode ou não estar presente na capela. O rito, a que já ouvi chamar de «amarração em terra» por contraposição a «amarração no mar», consiste na oferenda de velas, em voltas a pé ou de joelhos à capela pelo cliente, eventualmente acompanhado ou guiado pela bruxa, e em orações. Pode ainda complicar-se com outros detalhes rituais.

É só depois deste rito que as pessoas se dirigem para uma praia onde a bruxa realiza a «amarração no mar», ou seja deita ao mar as cinzas do defumadouro e, geralmente, profere uma oração murmurada como sempre fazem os bruxos. Noutros casos a bruxa trata das cinzas do defumadouro sozinha, mas não tenho informações suficientes a respeito.

Em todo o caso esta parte do ritual é formalmente assimilável ao rito de expulsão sumária no ritual mais simples. Mas com uma diferença significativa. Enquanto que no ritual simples composto apenas do rito do defumadouro e do rito de expulsão das cinzas, este último pode assumir um sentido negativo relativamente ao destino do espírito encostado, no ritual complexo, o rito na capela — a «amarração em terra» — que se interpõe entre os dois outros ritos, vai modificar o sentido do rito de expulsão das cinzas que lhe sucede, indicando normalmente um destino mais benéfico para a alma transviada.

O sentido dos ritos, dos rituais e das suas combinações possíveis não é todavia constante. Além disso, não é assunto de discussão explícita: os clientes remetem-se frequentemente à sua ignorância e os bruxos não dizem mais que meias palavras.

Ao contrário do que seria de esperar, o ritual complexo, tripartido, é frequentemente utilizado nos casos de espíritos maus. E, no entanto, o destino do espírito é negativo: «vai para o mar colhar», como já me foi dito. O rito da capela parece ser, neste caso, um apelo à esfera divina para a libertação da vítima e uma solicitação do auxílio celeste contra um espírito difícil e não um apelo à benevolência para com este.

Por outro lado, o ritual simples, composto apenas de defumadouro e expulsão das cinzas, pode ser usado para os casos do espírito que não pagou uma promessa, para o nostálgico ou para aquele que está em dificuldades no além e vem pedir auxílio, ou seja, para espíritos que, aos olhos dos intervenientes, não estão animados de más intenções. Todavia, e é necessário sublinhá-lo, há sempre o pagamento da promessa, as velas que se põem a arder ou as missas que se escutam, que não só satisfazem as necessidades do morto como também servem de consagração religiosa, anterior ao rito de expulsão nas águas e, mais uma vez, anulando um possível sentido negativo quanto ao destino do espírito.

A expressão «espírito fraco» designa uma grande susceptibilidade àquilo que poderíamos chamar de influências espirituais. Esta susceptibilidade, contudo, está intimamente associada, na perspectiva das pessoas do meio, a certas disposições psicológicas que denunciam uma fragilidade íntima como o carácter impressionável, o medo fácil, a instabilidade emocional e o nervosismo.

Frequentemente, nas histórias de encostos, o espírito não se encosta à pessoa a quem quer mas àquela a quem pode: a que tem um espírito fraco. Embora também haja casos de homens maduros vítimas de encostos, trata-se a maior parte das vezes de mulheres, crianças e adolescentes, o que — tem de ser dito — é coerente com as noções, sentimentos, atitudes e vivências patriarcalistas e marialvas profundamente inscritos na cultura portuguesa[2]. Todavia, ao contrário do que afirmou Moisés Espírito Santo, um estudioso português que se debruçou sobre o assunto, não é de todo verdade que todos os espíritos responsáveis pelas possessões sejam masculinos e que todos os possuídos sejam mulheres e crianças.

Mas, voltando ao nosso tema, a pessoa com o espírito fraco pode em certas alturas ou permanentemente manifestar certos sintomas que, se não indiciam um encosto, se ligam a uma susceptibilidade às influências «espirituais» momentaneamente acrescida. É o caso da pessoa que desperta muito cansada, que sente presenças e é tomada de medos, que se sente mal nos cemitérios e nos enterros. Podem ser tratadas com os rituais genéricos utilizados para os encostos e com amuletos.

Mas o espírito fraco, verdadeiro doente potencial do bruxo não é apenas particularmente sensível às influências dos mortos, mas também aos bruxedos dos vivos.

Já não nos resta muito tempo. A análise da possessão abriu-nos já uma perspectiva sobre a personagem do bruxo, os clientes, as consultas, os rituais.

Os problemas de assombramento de casas, tratando-se de espíritos de mortos, são de algum modo assimiláveis aos fenómenos de possessão. É clássica a história da pessoa que quer vender uma casa e que, apesar de sucessivas oportunidades, não chega a consegui-lo. Um bruxo é consultado. Trata-se do antigo proprietário. Após a defumação da casa, ele é amarrado nas capelas e deitado ao mar. Dias depois, o negócio conclui-se.

Antes de acabarmos, tratando brevemente os problemas de bruxedos, uma palavra sobre as consultas de vidência e de influência. Estas constituem uma parte significativa da actividade do bruxo e das solicitações dos clientes, em particular daqueles com alguma familiaridade com o meio.

Os motivos dos que solicitam do bruxo as suas faculdades de vidência são múltiplos. Os pais que suspeitam da idoneidade do futuro genro e a mãe que vai consultar o bruxo para esclarecer as dúvidas. O comerciante que deseja saber se o momento é oportuno para a realização de um negócio importante; a futura mãe, acompanhada da futura avó que desejam informar-se sobre o estado de saúde do feto; a mulher que deseja saber se o marido tem um caso com outra, etc., etc.

O peso dos casos em que o cliente pede ao bruxo que influencie uma terceira pessoa, no conjunto das consultas e solicitações aos bruxos, é difícil de ponderar porque se fala pouco disso. Trata-se de magia activa, e até mesmo ofensiva. E a designação de «bruxedo» apenas depende da avaliação moral. Para certos bruxos, seria impensável, a maioria ostenta a recusa de «trabalhar para o mal», como se diz, mas outros há que são mais ambíguos. As finalidades são previsíveis: conseguir ligações amorosas e sexuais assim como prevenir ou impedir uma separação ou uma infidelidade, dificultar os negócios de um industrial rival, livrar fulano da tropa, etc., etc.

A bruxaria é «uma coisa que tem muitos caminhos», como me disse uma bruxa que entrevistei. De facto, é grande a variedade de procedimentos. É difícil conhecer praticantes de bruxaria ofensiva ou «magia negra», como se lhe chama. Estes não precisam de ter qualidades especiais como o bruxo, mas apenas de conhecer o ritual ou rituais que emprega. A maior parte das histórias que ouvi chegou-me através dos clientes que viram o seu problema (ou o do familiar ou amigo) diagnosticado como tratando-se dos efeitos de uma bruxaria. Geralmente não é um bruxo que é responsabilizado pela bruxaria mas alguém que se sabia ser ou que se revela ser interessado em causar prejuízo ou em influenciar a vítima.

De entre os casos típicos podemos evocar o do jovem que se torna negligente e perde o amor-próprio. A sua mãe vai à bruxa e o espírito de uma rapariga responsável pelo bruxedo vem falar pela boca desta. Não declina todavia o nome. Da boca da bruxa nunca sai o nome do responsável de uma bruxaria ou do espírito encostado. Todavia é frequente os clientes reconhecerem os gestos, o tom da voz, as idiossincrasias, etc, etc, e é por aí ou pela descrição da relação entre o espírito e a vítima ou entre o responsável da bruxaria e a vítima que a identidade do primeiro é estabelecida. Noutros casos, porém, a identidade do autor da bruxaria não chega a ser determinada.

Outro caso clássico, envolve de novo a venda de uma casa ou propriedade que teima em não se realizar. Trata-se de alguém, com interesse em que o negócio não se faça, que fez ou mandou fazer um «trabalho» ou «serviço». Muitas vezes com «terra do cemitério». Num caso que me foi contado, o bruxo, depois de diagnosticar um bruxedo, solicitou ao cliente — a esposa do proprietário a quem este pediu que fosse ao bruxo no seu lugar — solicitou-lhe, dizia, que lhe trouxesse terra da propriedade para ele fazer um trabalho. A terra encantada foi reposta na propriedade que, dias depois, foi vendida.

A terra de cemitério parece ser aliás um material comum nas alegadas bruxarias. É colocada num sítio onde o visado deverá passar. Depois de a pisar começa a padecer da doença que vitimou o morto de cuja campa a terra foi retirada. Verifica-se também o caso do cliente que consumido por um padecimento que os médicos não conseguiram diagnosticar ou tratar vai ao bruxo que descobre então que ele calcou terra do cemitério que se destinava a outra pessoa.

Como se vê, nestes casos o bruxedo consiste numa possessão magicamente induzida, independentemente de o rito poder falhar o alvo.

Noutros casos o bruxedo é feito com substâncias magicamente preparadas que, dissimuladamente, são dadas a ingerir à vítima. O remédio é um purgante mágico, cuja composição só a bruxa conhece — um dedal de pó — e que provoca profusos vómitos e diarreias através dos quais se liberta o mal.

Se em muitos casos, senão em todos, a bruxaria envolve a intervenção de espíritos, o mesmo se poderá dizer para o mal de inveja. Não é um bruxedo, porque o invejoso produz o efeito mágico sem se dar conta disso. É o teste que corre mal ao aluno bem preparado, o casaco novo perdido, as dores de cabeça e mesmo acidentes... Uma bruxa entrevistada chamou-lhe «fogo vivo»; «fogo» é o espírito; «vivo», porque se trata do espírito do vivo, do invejoso, que se aproxima da vítima e lhe causa o mal sem no entanto estar ciente do que está a fazer.

De facto, de parte em parte, a questão é a da mobilidade dos espíritos. O espírito do morto que se encosta ao vivo; o espírito do feiticeiro e do invejoso que causam perturbações e estragos à distância; o espírito do guia que intervém a quilómetros do bruxo para proteger o cliente; o espírito do responsável pelo bruxedo que é chamado, sem disso se dar conta, a depor pela boca do bruxo; o espírito deste ou o seu guia, quem sabe, que investigam o que se passa num outro lugar no momento mesmo em que o cliente contempla a expressão animada do bruxo...

Quanto ao indivíduo, ele é, ao mesmo tempo e sem contradição, uno e plural. Ele é a sua pessoa consciente. Mas estão-lhe indissociavelmente ligados o seu corpo, o seu espírito e o espírito do guia, o qual, diz a opinião corrente é um atributo de todas as pessoas. No encosto ou, por vezes, na vítima de um bruxedo, um outro espírito vem acrescentar-se. E no corpo aberto são vários a aparecer, a encostar-se, a entrar e a sair.

Não podemos contudo julgar esta série de vivências, ideias, sentimentos e representações como uma espécie de corpo estranho na cultura Portuguesa. Apesar de se tratar de um traço usualmente discreto, a possessão e o xamanismo — isto é o espírito que viaja — estão profundamente inscritos na nossa cultura, e os testemunhos disso encontrámo-los onde menos esperamos.

Por exemplo, nos gracejos.

«Alguém está a falar de ti», dizemos ao ver encarnadas as orelhas de um amigo. Ou então: «alguém quer falar contigo», dizem-nos se deixamos cair uma travessa. São coisas tão banais e, aparentemente, tão destituídas de importância que poucas pessoas se lembrarão de perguntar: «mas afinal de contas, porque é que dizemos isso»?

Bibliografia

ESPÍRITO SANTO, Moisés, 1990: A religião popular portuguesa, Lisboa, Assírio & Alvim.

MAUSS, Marcel e HUBERT, H., (1902-1903): «Esquisse d’une théorie générale de la magie» in MAUSS, Marcel, 1995 (1950): Sociologie et Anthropologie, Paris, P.U.F..

MONTENEGRO, Miguel, 1995: Le corps ouvert, Paris, Publications de l’Université Paris VII - Denis Diderot.

MONTENEGRO, Miguel, 1996: Le corps ouvert II, mémoire de DESS inédito, Paris, UF anthropologie - ethnologie et sciences des religions, Université Paris VII - Denis Diderot.

VALE DE ALMEIDA, Miguel, 1997: «Marialvismo. Fados, touros e saudade como discursos da masculinidade, da hierarquia social e da identidade nacional» in Trabalhos de antropologia e etnologia, vol. 37 (1-2), Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e etnologia.


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[1] Conferência proferida em 28/04/1998 na Escola Superior de Enfermagem de Vila Real, Portugal.

[2] cf. artigo de Miguel Vale de Almeida referenciado na bibliografia.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A Saudação ao Deus Serpente


Slania tei!

O Cortejo da Cobra Grande foi um Festival folclórico e Pagão maravilhoso, onde a música, a dança, os tambores, maracas e cânticos alegres festejaram o Deus Serpente de nossa Terra Jacarehyense, que serpenteou pelas ruas da cidade de Jacareí, seguido de Seu Povo...

Bendiciones da Serpente \|/

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Procissão do Deus Serpente em Jacareí


Saludos!

No dia 21 de Agosto (domingo agora) a Fundação Cultural de Jacarehy realizará a segunda edição do "Cortejo da Cobra Grande", pelas ruas da cidade. Trata-se da revivescência de um antigo mito indígena local (que inclusive é recontado em outras cidades do Vale), sobre um Deus Serpente gigante, que recebia das tribos locais o sacrifício de moças virgens. Um dia, um dos guerreiros da tribo se apaixonou por uma virgem sacrifical, e resolveu lutar com o Grande Cobrão,até que conseguiu matá-lo. A Tradição diz que Ele era IMENSO, tanto que ao se jogar Seu corpo ao chão, este afundou, formando um grande vale...e quando vieram as chuvas, estas encheram o fundo da depressão, formando o Rio Paraíba do Sul (esta lenda explica o formato serpentiforme do rio).

Outra lenda conta que o corpo desse Grande Serpenteão foi cortado, e que as partes foram enterradas em determinados locais daqui de Jacareí, onde foram erguidas igrejas: a cabeça na Igreja Matriz, o corpo na Igreja de São Sebastião (no bairro Avareí), o rabo (cujo simbolismo fálico é enaltecido na lenda) na Igreja de Nossa Senhora Aparecida (que fica na beira do rio, e que é o local onde, segundo outra lenda, teria sido atirada uma imagem da Virgem Maria ao rio, justamente para aplacar a Fúria do Serpenteão - e que é uma releitura simbólica do sacrifício das virgens indígenas de antigamente. Segundo contam, também pode ter sido esta imagem em específico que foi levada pelas águas até a região da atual cidade de Aparecida, onde noséculo XVII a imagem da santa foi resgatada das águas, fazendo milagres) e as patas do DeusSerpente foram enterradas debaixo da Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso (o que nos leva à constatação que se tratava de um Dragão...). Há controvérsias sobre os locais exactos onde teriam sido enterradas as prtes do Serpenteão, mas o que fica registrado é que se trata de lenda muito antiga, e que até hoje, é tabu para muitas pessoas (principalmente ligadas à Igreja Católica...sabemos o porquê....).

A pergunta que não quer calar: e o que tal tradição tem a ver com as tradições ibéricas?

Não me aprofundando nas questões referentes a descendência cultural ibérica em nossa Terra Brasilis, sabemos que a Serpente é mitema corrente na iconografia ibérica: seja em Portugal e as serpentes que surgem esculpidas nos pórticos das igrejas, seja nos mitos dos Deuses Serpentes Sugaar e Herensuge dos bascos, entre tantos outros...

Falando sobre a procissão em si:

No dia 21 de Agosto (domigno agora) haverá uma procissão onde o mito do Serpenteão será relembrado e revivido, com um grande boneco de tecido movido por pessoas dentro dele, queandará pelas ruas da cidade, acompanhado de tambores e muita animação. É um Grande Festival Pagão de Nossa Terra, que deve com certeza ser prestigiado!

Abaixo, maiores detalhes do evento:

Cortejo da Cobra Grande

Data: 21/08/2011

Horário: 15:00h às 17:00h;

Local de partida: Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV), sito à Rua XV de Novembro, 143, centro;

Haverá a participação do Grupo de Percussão do Ponto Sapucaia.

Estão todos convidados!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Sorginkeria: Bruxaria Tradicional Basca


“Donostiarrák ekarridute
Guetariatyk Akerra
Kanpantorrian ipiñidute
Aita Santutzát Dutela...”


- Cântico de invocação de Akerra, o Deus Bode ( 1 ).

O País Basco, ao norte da Espanha, chamado Euskadi ( uma região politicamente autônoma, mas não totalmente independente ) possui uma cultura única não só na Europa, como no Mundo, por motivos que dividem até hoje não só historiadores como estudiosos de outras áreas. Compõe, junto a demais províncias, a chamada “Euskal Herria” ( A Grande Nação Basca ), envolvendo todos os territórios de cultura e tradição basca, divididos em dois blocos: Hegoalde, o “País Basco Peninsular”, com suas províncias: Biskaia, Áraba, Nafarroa Garaia e Gipúzkoa; e Iparralde, o “País Basco Continental”, do outro lado dos picos pirenaicos, já no sul da França, composto pelas províncias de: Zuberoa, Lapurdi e Nafarroa Beherea. O povo basco é o mais antigo do continente europeu, anterior às invasões indo-européias, e mantém, até hoje, o mesmo idioma falado há mais de 4 mil anos: o Euskera. Uma outra peculiaridade dos bascos está em suas lendas e mitos: apesar de manterem crenças em elementais da natureza, como outros povos, os bascos mantém uma relação com tais Espíritos bem mais próxima e natural. Rituais e oferendas aos Gauazkuák ( "Os da Noite", seres mágicos guardiões dos Antigos Mistérios ) são comuns, e até hoje, as Sorgiñák ( Bruxas, em euskera ) celebram o Akelarre ( "Prado do Bode": culto Feiticeiro ao Deus Bode ) naquelas terras. As Sorgiñák são, na verdade, o elo entre os Gauazkuák e os Eguniekuák ( "Os do Dia", compreendendo as pessoas comuns, os não-Bruxos ); essa qualidade limiar faz das Bruxas Bascas seres, ao mesmo tempo, naturais e sobrenaturais.

Nos Akelarres são cultuados os Ireluák ( Espíritos ), tais como: Egoarák ( os Ventos, Filhos da Sorgiña Aizia ); Mamurrák ( os Insetos, muito prestativos, trazem a Boa Sorte ); Gaueko ( Deus da Escuridão, Senhor dos Mistérios, que castiga todo aquele que ousa menosprezar a Noite ); Inguma ( Senhor dos Sonhos, que é saudado com uma oferenda de um jarro de água debaixo da cama, proporcionando sonhos premonitórios...já àqueles que o desagradam, causa pesadelos terríveis ); Iratxoák ( Duendes ); Jentilák ( os Gigantes pré-históricos, que viviam nas terras altas e não conheciam o ferro. O mais conhecido deles é o Olentzero, que traz presentes na noite do Solstício de Inverno – possível origem do Papai-Noel ); Mairuák ( Gênios construtores dos cromelechs, os círculos de pedras ancestrais ); Lamiák ( Ninfas ou Fadas que vivem junto às águas e em grutas subterrâneas, são tidas como construtoras de pontes ); Mamarro ( Duendes travessos, mas que podem servir ao ser humano ); Sán Martín Txiki ( São Martin Pequeno, que se trata do espírito de um padre católico, incorporado pelas crenças medievais sincréticas das Sorgiñák como um elemental a mais ); Galtxagorriák ( “Os de calção vermelho” ) e os Gorritxikiák ( “Os Vermelhinhos” ), também são duendes que auxiliam o trabalho doméstico das pessoas; Basaiaun e Basandréd ( Senhor e Senhora dos Bosques, protetores das florestas ), Ilargia Amandréd ( Avó Lua ), Deusa Ancestral, assim como Amalurra ( a Mãe Terra ); Ortzi ( Deus celeste, Senhor dos raios ); Janicot ( Deus do Akelarre, uma das personificações do Deus Bode ); Benzózia ( a Diana dos bascos, Deusa da Lua e da Magia ); Ehistari Beltza ( “O Caçador Negro”, Deus das Florestas, associado ao celta Gwyn Ap Nudd, ou Herne o Caçador ); Jainkoaren Bégia ( o "Olho de Deus", Espírito Solar, mais tarde cristianizado ), entre muitos outros...

Mas, acima de todos, as Sorgiñák cultuam Mari, a Grande Deusa Bruxa, Senhora das Tempestades e Soberana da Terra, que habita nas Coevas ( grutas subterrâneas ) das montanhas, junto das Lamiák. Mari é representada pela Joaninha ( Marigorri: Mari a Vermelha ), e é venerada junto a seus maridos Divinos: Akerbeltz ( Bode Negro, em euskera ), Deus Chifrudo das Bruxas Bascas, Senhor da Vida e da Morte, Grande Mestre do Akelarre, que traz a Luz da Sabedoria ardendo entre os Seus Chifres; Sugaar, ou Sugoi ( também chamado Maju ), Deus Serpente com quem Mari se une sexualmente nos Céus, para produzir tempestades; e Herensuge, Deus Serpente de várias cabeças, muito invocado como benfeitor dos seres humanos. Mari também é chamada de Anbotoko Sorgiña ( a Bruxa do Monte Anboto ), Basko Marie ( Mari do Bosque ), entre outras denominações, e é tida como a Senhora das riquezas da Terra. Ela recebia oferendas de carneiros ou moedas para a obtenção de graças ou para proteção contra as tempestades, já que era a Senhora das Tormentas. É a Rainha de todos os Espíritos, e possui duas filhas ( em alguns locais, são considerados filhos ): Mikelats e Atarrabi. Mari se apresenta de várias formas: como uma Dama elegantemente ataviada, ou como uma Deusa sobre um carro puxado por quatro cavalos, percorrendo os céus...também aparece como uma belíssima mulher envolta em chamas, voando pelas alturas, ou então coroada pela Lua Cheia...também surge na forma de uma bezerra, de um corvo, ou como uma nuvem branca, um arco-íris, etc. É a Suprema Divindade da Sorginkeria, Deusa que condena a mentira, o roubo, a vaidade exacerbada e fútil, a falta de ajuda mútua. As pessoas acabam sendo castigadas com a privação ou a perda do que foi objeto de mentira e usurpação. Mari se abastece à conta dos que negam a verdade e dos que afirmam mentiras: ezagaz eta baiagaz ( abastece-se com a negação e com a afirmação mentirosa ).

As crenças mágicas das Sorgiñák são profundamente animistas, e se baseiam na relação entre o material ( berezko ) e o espiritual ( aideko ). Berezko é de característica manifesta, externa, enquanto Aideko é visto como latente e interior. Essa dualidade, sempre presente na Sorginkeria ( a Noite e o Dia, os vivos e os mortos, a Lua e o Sol, etc. ), está presente também no conceito de Adur e Indar, que é a base da compreensão de Mundo dos antigos bascos. Adur é o potencial latente de alguma coisa ou ser vivo, enquanto Indar é seu poder manifesto e ativo. A Feitiçaria, segundo as Bruxas e Bruxos Bascos, é exercida através de tais conceitos, que ensinam que tudo pode ser conectado ao Irelus ( Espírito ) de algo ou alguém pelo Adur e pela semelhança.

A Feitiçaria das Sorgiñák envolve práticas de magia simpática ( “semelhante atrai semelhante” ) em que moedas representam aqueles que serão enfeitiçados, através dos rostos humanos ali cunhados. Tais moedas são lançadas ao fogo. Também se utilizam de plantas e árvores consideradas sagradas, como o carvalho ( Aritza, símbolo da Força e resistência do Povo Basco ); a flor do cardo ( Eguskilore, ou “Flor do Sol”, em euskera ) que é pendurada na porta de casa, pelo lado de fora, para manter a presença do Sol, mesmo durante a Noite, afastando assim, os Espíritos malignos; o espinheiro ( Elorri ); o loureiro ( Ereñoa ); a faia ( Pagoa ), etc. Animais como o bode ( Akerra, o Deus das Bruxas ), a joaninha ( Marigorri, símbolo de Mari ), a abelha ( erlea, que é pecado matar ), o asno ( Asto ), entre outros, desde sempre foram considerados sagrados pelas Sorgiñák.

Há também uma crença forte no poder do Begizko ( Mau-Olhado ), considerado um Dom malévolo próprio de determinadas Bruxas. Para combater o begizko, a Bruxaria Basca ensina a confecção dos kuthunák ( bolsinhas de pano com ingredientes mágicos dentro ), usadas penduradas ao pescoço ( são principalmente recomendadas às crianças mais novas e bebês de colo, que são vítimas mais comuns do Mau-Olhado ). Tais amuletos continham elementos já conhecidos, tais como o alho e a arruda, assim como também pedras, corais, pedaços de cordão umbilical e, até mesmo, excremento de galinha. Objetos como cartas de baralho e bolas de cristal, popularmente associados às Artes Divinatórias, são utilizados em sortilégios e rituais mágicos. Também se utiliza carvão, figas, ervas como estramônio, beladona, e animais como o sapo ( tais ervas, assim como o veneno do sapo, são empregados em ungüentos de vôo das Bruxas ).

O sapo também é utilizado em malefícios. Segundo o relato dos antigos, tais feitiços e poções maléficas eram feitos nos Akelarres, com a supervisão do Mestre Negro. Pós Maléficos Enfeitiçadores eram embrulhados na pele de um sapo e enviados à pessoa que se desejava matar. Tais Pós Maléficos eram feitos com ingredientes mágicos, cuja colheita e preparação eram conduzidas pelo Grande Akerbeltz, personificado por um Bruxo de Alto Grau, chamado El Maestro, o Mestre Negro. Esses filtros malignos eram espalhados pelos campos daqueles que deviam ser amaldiçoados. O Mestre do Akelarre indicava a seus acólitos o dia propício, ordenando aos Bruxos para irem em equipes em busca dos elementos que compõe o Feitiço: sanguessugas, sapos, cobras, lagartos, lesmas, caracóis e peidos-de-lobo ( pequenas bolas que crescem na terra, como túberas, e de onde sai um pó cinzento quando apertadas ). Os Sorgins traziam os ingredientes para casa, de madrugada, e com eles, preparavam os venenos. A poção, que era feita no Akelarre, ou mesmo em suas casas ( mas sempre com a supervisão do Mestre Bode ), possuía poderes de dessecação e morte. Ao terminarem a confecção do veneno, os Bruxos deixavam o Akelarre, sob a forma de animais, e com o Bode Negro à frente. O Sorgin Miguel de Goyburu disse que levava o caldeirão dos pós maléficos, os quais eram espalhados nos lugares condenados, enquanto o Mestre Negro dizia: “Pós, pós, que tudo fique perdido!”, ou então: “Que metade fique perdida”. E as Sorgiñák e Sorgins mais experientes, iam repetindo: “Que tudo fique perdido ( ou metade somente ) e que meus bens fiquem a salvo!”. Os Bruxos evocavam o Vento Egoya, que soprava do sul no início do Outono, para espalhar os males pelos campos dos inimigos. Mas muitos malefícios são feitos com objetos simples e cotidianos, tais como as já citadas moedas, ou mesmo, com velas. As Sorgiñák lançam maldições acendendo velas, que são consagradas e batizadas com os nomes daqueles que desejam castigar, enquanto conjuram o Fogo, fazendo com que pereçam junto com a cera que lentamente se esvai, consumida pela chama...

Quando da cristianização das terras bascas, os párocos cristãos realizaram sermões condenando as práticas pagãs. Isso pouco alterou a vida das Sorgiñák, que permaneceram com os ritos da Tradição. Todas as Famílias Bascas mantinham rituais e costumes antigos em suas casas, como o de saudar os Espíritos Ancestrais. Parte destes cultos envolvia o sepultamento dos mortos da Família em casa, onde eram venerados como os Lares antigos. A Casa ( Etxea ), era vista não apenas como habitação dos vivos, mas também, como Templo do Culto aos Ancestrais, aos Deuses e Espíritos do Lugar ( Anima Loci ); era o centro de convivência doméstica, mas também o centro espiritual e energético dos bascos. Os padres buscaram evitar que tais cultos continuassem, levando as famílias a sepultar seus mortos em cemitérios, nas terras da igreja. No entanto, os cultos pagãos permaneceram dentro de casa, conduzidos pela Etxeko Andréd ( Senhora da Casa, de "Etxe" = Casa; e "Andréd" = Senhora ). Os padres católicos se viram, então, obrigados a ceder espaço em suas igrejas para a construção de capelas especiais, chamadas Yarleku, pertencentes, cada uma, a um Clã distinto da comarca. Os rituais Pagãos das Bruxas Bascas invadiram as igrejas cristãs.....Somente a Etxeko Andréd possuía a chave do Yarleku de seu Clã, e apenas ela podia celebrar os ritos ali dentro.

Em Iparralde, no País Basco francês, fica a região do Labourd, conhecida como Terra de Bruxas, tamanha a concentração de Clãs de Sorgiñák naquelas terras. No início do século XVII, as autoridades locais pediram ao rei da França, Henrique IV, que enviasse um inquisidor. Em 1609, o rei manda o então conselheiro do Parlamento de Bordéus, Pierre De Lancre, para resolver o caso. Baseado nos processos inquisitoriais que se seguiram, ele publicou livros sobre o tema, como o "Tableau de L'inconstance de Mauvais, Anges et Démons", o qual faz questão de ilustrar com gravuras, feitas pelo pintor Ziarko. Tais imagens, ao serem vistas pelas Sorgiñák e Sorgins de então, foram por estes reconhecidas como retratos de suas tradições e rituais de Bruxaria ( assim como ocorreu com as Streghe Italianas, ao verem as gravuras que Francesco Guazzo imprimiu em seu livro, “Compendium Maleficarum”, escrito com a pretensão de denunciar as práticas Bruxas ). Com a chegada de De Lancre, grandes caravanas de Famílias de Bruxas atravessaram os Pirinéus, indo dar os costados em terras de Espanha e Baixa Navarra. Muitos deles alegavam estar peregrinando aos santuários cristãos de Montserrat ( Catalunha ) e de Santiago de Compostela ( Galiza ). Muitas dessas Famílias de Bruxas se fixaram por toda a Espanha, ou mesmo partiram para o Novo Mundo, se assentando em países como Canadá e Argentina, onde até hoje, existem descendentes dessa Diáspora Basca.

Um dos Sorgins ( Bruxos bascos ) mais conhecidos da História de Euskal Herria foi Johanes de Bargota, que viveu no século XVI. Bargota se formou padre em Salamanca, onde também foi iniciado na Coeva de Bruxos local. Retornando ao País Basco, buscou o intercâmbio junto às Sorgiñák, sendo iniciado nos Mistérios do Akelarre do Monte de Oca, pelas mãos da Bruxa Endrogotto. Foi o primeiro a registrar ensinamentos mágicos da Sorginkeria, a Bruxaria Basca, que influenciaram muitas Tradições da Arte, inclusive a Wicca moderna. É atribuído a um manuscrito de Bargota, que teria sido mostrado a Gerald Gardner, a criação de textos de seu Book Of Shadows, como a sua versão de A Runa das Bruxas, que teria sido originalmente, escrita pelo Bruxo Bargota. Mesmo frequentando o Akelarre, ele não deixou de celebrar a missa na igreja local. Era comum vê-lo perambular pelas ruas de seu vilarejo, logo de madrugada, retornando do Monte de Oca, a caminho da missa dominical. Ele adorava o Bode Negro no Akelarre, durante a noite, e adorava o Cristo Branco na Missa, durante o dia. Depois de ser denunciado às autoridades eclesiásticas, foi preso pela Inquisição de Logroño, junto com outros acusados de Bruxaria. Johanes, no entanto, foi poupado da morte na fogueira, mas teve usar um sambenito ( espécie de túnica ), onde se lia "Diós perdonad al nigromante" ( Deus perdoe o feiticeiro ), o que era um motivo de escárnio, uma vergonha, ainda mais para um padre. Johanes teve também toda sua biblioteca de livros de Magia, Necromancia e Conjuros queimada pelos inquisidores... diziam as gentes de Bargota que, junto com os livros, se esvaiu consumido pelas chamas o Bruxo, permanecendo o clérigo... mas, até o fim de seus dias, Johanes lembrou com lágrimas nos olhos dos tempos em que voava livremente até o Akelarre do Monte de Oca, ou o Akelarre às margens do Rio Ebro, montado em uma nuvem magicamente conjurada, que o transportava pelos ares... e foi justamente a imagem do Bruxo Johanes que permaneceu viva pelo correr dos séculos, figurando inclusive no Brasão da cidade de Bargota; Outras Sorgiñák, no entanto, foram mortas nas fogueiras, entre elas, Necate de Urrugne, presa por De Lancre, e que era tida como Maestra de um Akelarre muito freqüentado; também Jeanette de Belloc ( chamada Atsoua, “A Velha” ), assim como Oylarchahar e Marie Martin de Adamcehorena, igualmente presas pelo inquisidor; E assim como também Maria Miguel de Orexa, Bruxa Basca do século XVI. No vale de Araiz, em 1559, Maria Miguel de Orexa, de 26 anos, foi submetida a cuidadoso interrogatório, pelo qual se apurou que ela tinha sido iniciada na Bruxaria por sua avó, aos 10 anos de idade. A anciã estava à beira da morte: a Tradição afirmava, então, que uma Sorgiña não poderia deixar este mundo sem transmitir suas aptidões, seu Dom, a outra pessoa. Maria Miguel contou que tinha sido levada a um Akelarre. Depois de untada com o Ungüento Mágico, voara com 15 outras pessoas, para o local do encontro. Na costa de Urrizola, os inquisidores encontraram duas poltronas, cada uma com uma figura sentada: de um lado, um homem com cabeça de bode e, do outro lado, uma mulher. Maria os identificou como Belzebu e sua esposa. Analisando o nome Belzebu, chegamos ao significado de “Senhor da Terra”, “Senhor do Submundo”, da terra negra, da matéria, das grotas infernais...tais conceitos levam a Akerbeltz, o Bode Negro, Senhor das Bruxas, o Grande Mestre Sabático... E lembremos também que, em se tratando das antigas Bruxas, era preferível entregar-se à morte no fogo, alegando prática satanista anti-cristã, a dizer os nomes de seus Deuses...

A Bruxaria Basca, uma Tradição Ancestral, cujas raízes se perdem na Pré-História, dado que é praticada desde os tempos remotos em que o Euskera começou a ser falado, continuou sendo vivenciada através dos séculos... Preservada da sanha assassina da Inquisição, que curiosamente, chegou a defender as Bruxas ao invés de perseguí-las ( como algumas correspondências da época, entre bispos locais e inquisidores nos demonstram ), a Tradição da Sorginkeria permaneceu viva até épocas bem recentes, como alguns testemunhos modernos nos podem revelar, como este publicado por Julio Caro Baroja em sua obra “As Bruxas e o Seu Mundo”, e que lhe foi relatado por um médico cirurgião de Madrid, nascido em Deva, Guipúzkoa:

- “ Uma noite de Verão, há três ou quatro anos ( cerca de 1929 ), ia eu de automóvel de Deva a Bilbao, pela estrada da encosta. Entre Lequeitio e Ispaster, muito perto desta aldeia, vi no meio da estrada uma forma negra e imóvel, apesar das minhas repetidas buzinadelas para chamar a sua atenção e a afastar da estrada. Só a alguns metros dela reconheci que se tratava de uma mulher. Irritado com a sua atitude, parei e perguntei-lhe em basco: ‘Por que é que não se afasta quando se buzina?’ A mulher ficou um momento indecisa, depois desatando a rir, disse-me: ‘Não vê que estou no Akelarre?’ Mal tinha dito estas palavras, ouvi as vozes de outras pessoas vindo de um prado vizinho, para onde ela se dirigiu correndo. Continuei o meu caminho, sem prestar mais atenção a este incidente.” ( 2 )

A percepção de Mundo das Sorgiñák, as Bruxas e Bruxos do povo basco, é de uma natureza anterior à das civilizações de carácter expansionista-imperialista. Envolve uma forma de viver imersa na Natureza, onde o ser humano é visto como parte Dela, e não como seu suposto “controlador”. Não existem fronteiras entre o material e o espiritual, pois tudo está interligado...e os Deuses e Espíritos, sempre estão presentes, seja nas altas montanhas, nos ventos que cortam o Prado do Bode, nos campos de um verde inesquecível, no Mar impetuoso, nas praias, em sua maioria, rochosas, nas ancestrais florestas de carvalhos....e mesmo nos caseríos ( basérria ) dos antepassados, morada e templo daqueles que já foram considerados o povo mais antigo do Mundo. Para eles, tudo é Sagrado, pois tudo possui alma, e tudo existe, bastando ter nome. Como dizem as Sorgiñák: “Izena zuen guztia omen da” ( Tudo o que tem nome existe ).

A Tradição desse povo ancestral ainda vive, não só na Terra Sagrada de Euskal Herria, como também onde quer que seus filhos e descendentes tenham peregrinado...pois, não importando o quão distante e estrangeira é a terra em que se está, o basco possui uma herança que jamais esquecerá, ainda que não a conheça. Tal como o Carvalho da cidade de Guernica, ao redor de cujas raízes os bascos, desde tempos remotos se reuniam para tomar as decisões mais importantes de seu povo, e que sobreviveu incólume ao bombardeio que destruiu toda a cidade na Guerra Civil, em 1937, essa gente guerreira parece marcar presença não só no início de Tudo, como também viverá pelos séculos sem fim que despontam adelante...E a Força dessa Tradição ecoa não só nas lendas, danças ou ritos mágicos da Sorginkeria....Ela está presente no sangue, na alma e na forma de ser e de viver do povo. Como disse Victor Hugo, um admirador dessa cultura ancestral:

“Nasce-se basco, fala-se basco, vive-se basco e morre-se basco”.

Por: Raven Luques McMorrigú.

Fontes:


"No Antro das Bruxas de Zugarramurdi" – de Gilberto de Lascariz:

www.projectokarnayna.com/bruxaria-hispanica/zugarramurdi


"As Bruxas e o Seu Mundo" – de Julio Caro Baroja – Editorial Vega.

“Bruxaria e História – As Práticas Mágicas no Ocidente Cristão” – de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Editora Ática.


( 1 ) - “Os de Donóstia trouxeram
um Bode de Guetàry
o puseram na torre do sino
e dizem que é o Santo Padre”

- “Iru Damatxo”, canção popular das Bruxas Bascas.

( 2 ) – “As Bruxas e o Seu Mundo”, pp. 317, 318.